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Queria dizer que me exercito para aliviar o estresse, mas quero ser gostosa. E tudo bem!

22/02/24

Faz um tempo que postar selfies na academia, ou na ciclovia mais próxima depois de uma corrida ou pedalada, se tornou rotina nas redes sociais. A gente acorda e enquanto ainda está debruçada na pia escovando os dentes, começam a chover os vídeos e fotos estimulando o estilo de vida saudável. No fundo, pouco importa a motivação por trás da imagem. Pode ser para atiçar os flertes, mostrar para os amigos que está firme e forte ou dar aquela força para quem está tentando engrenar nos exercícios, o que me chama a atenção nesse comportamento (que eu faço muito e adoro) são as justificativas por trás de cada registro.

Existem as pessoas, e por pessoas eu digo mulheres, que colocam na conta da idade. Envelhecer com saúde. Poupança de músculos para os anos que estão por vir. Não querer ser uma senhora entrevada (essa daqui fui eu mesma que publiquei no twitter em algum momento).

Também tem a categoria das que estão correndo atrás de algum prejuízo metabólico ou de saúde: é bom para o problema da tireóide, do ovário policístico, do colesterol alto, a rótula do joelho precisa ser fortalecida e por aí vai. Existe, realmente, uma lista sem fim de pedacinhos do corpo que se beneficiam enormemente de exercícios físicos regulares. E é claro que manter essa rotina diminui vertiginosamente as chances de uma velhice caquética.

A dúvida apitando cada vez que leio essas justificativas para algo que jamais precisaria ser justificado – não só porque a saúde é importante, mas porque não é da conta de ninguém o que e por quê fazemos qualquer coisa com o nosso corpo – é: para quem estamos passando esse recibo? De onde vem a cobrança?

Os homens também participam dessa corrente das fotos de academia. Com fone no ouvido, rosto suado, flexionando os braços para ressaltar algum músculo-qualquer-que-eu-não-sei-o-nome, postam tanto quanto a gente as fotos com cheiro de suor e trilha sonora de música eletrônica. Postam com legendas do tipo “monstro”, ou “o tamanho do moleque” ou só nada mesmo. Legenda nenhuma. Com a paz de espírito de quem nunca teve que dar muitas explicações e de quem, também, é bem pouco cobrado na vida.

O corpo perfeito, jovem, sem um grama de gordura com seios empinados e bumbum livre de celulites é uma cobrança que nós mulheres sofremos desde a infância. Parece exagerado, mas toda menina gorda com menos de 10 anos, se perguntada, pode confirmar. Emagrecer “por saúde” é uma das roletas que a gordofobia coloca para corpos na maioria feminininos e não-magros, adultos ou não, como se somente na magreza existissem índices sanguíneos perfeitos – o que a medicina já cansou de desmentir.

Eu amaria dizer que os exercícios físicos são puramente uma válvula de escape para o estresse. Mas, a verdade é que boa parte do estímulo que me faz levantar da cama são os musculozinhos da perna se definindo.

Dessa história costurada em nossas mentes, muitas vezes, vem a cobrança interna por esse corpo perfeito. Essa cobrança pode estar em palavras autodepreciativas em conversas com amigas ou na frente do espelho. Quem nunca reclamou da celulite nas coxas, da flacidez na barriga ou do braço balançando quando dá “adeus”? Além das palavras, essa exigência também se esconde no nosso desejo pelo abdômen durinho e bumbum empinado. Um desejo cujo reflexo é o corpo, mas a origem é não estar na berlinda do julgamento. Não ser escanteada como mulher desejável, destino da maioria das mulheres gordas.

Um estudo feito pela Universidade do Arizona e pela Universidade de Puget Sound, nos Estados Unidos, divulgou que casamento em que os homens têm um peso considerado padrão (e aqui podemos, inclusive, nos questionar sobre o que é padrão?) e mulheres com sobrepeso apresentam um índice maior de discussões e desentendimentos do que os casamentos em geral. Quando o homem está acima do peso e a mulher não, os níveis de discussões e crises são semelhantes aos de casais com o IMC (índice de Massa Corporal) dentro dos padrões (de novo essa palavrinha questionável) adotados pela OMS. O IMC foi inventado no final do século 19 pelo polímata Lambert Quetelet e, embora a precisão seja amplamente questionada por não levar em conta a composição corporal do indivíduo, ainda é usada em pesquisas e consultórios médicos para estabelecer se o peso de uma pessoa é saudável ou não. Mais uma prova de que, quando falamos de peso, há muitas verdades que não sobrevivem a julgamentos simples pairando em nossas mentes.

Voltando ao estudo, mulheres gordas causam consequências em um casamento que homens gordos não vivem. A liberdade sobre como viver o próprio corpo não é elástica o suficiente para alcançar as nossas vidas, então nos vemos constantemente contaminadas por atividades físicas excessivas, dietas mirabolantes ou um rigor alimentício que pode exprimir saúde, mas é banhado em uma negação de desejos que não é saudável para ninguém. Constantemente nos vemos vítimas dessa ânsia pelo corpo perfeito que, no fim, está muito pouco conectado ao corpo.

Mais do que lutar contra o meu desejo patriarcal de ser uma grande gostosa, eu celebro meu olhar amplo sobre o que ser gostosa significa.

Se a cobrança pelo corpo perfeito e jovem é a nossa catraca de entrada para essa busca incessante, o feminismo vem com ares de catraca de saída. Os conceitos sobre opressões estéticas e as origens delas, algumas faladas nesse texto, tentam expulsar do nosso corpo a briga com o espelho. Lemos mulheres feministas na internet, lemos sobre feminismo em livros, bradamos aos quatro ventos a nossa liberdade para nos sentirmos verdadeiras impostoras quando olhamos nosso corpo e ficamos insatisfeitas. Quando os quilos a mais incomodam, as roupas apertam ou aquela celulite na foto das férias torna o registro impublicável. Fazer do próprio corpo campo de batalha contra as opressões de gênero não é tarefa fácil, ainda mais quando a guerra também acontece dentro da gente. Entender onde aperta não pressiona automaticamente o botão-da-bem-resolvida e sobra, mais uma vez, a danada da culpa para gente carregar. A culpa por não ser milimetricamente coerente. Por não ser perfeita.

Eu sou frequentadora assídua da academia. Corro na praia, ando de bicicleta e a verdade é que cada vez que vejo minhas pernas torneadas, me encho de orgulho. Eu amaria conseguir dizer que os exercícios físicos são puramente uma válvula de escape para o estresse, ou uma poupança de músculos para o futuro ancião que me aguarda. Mas, a verdade é que eu não sou tão coerente, muito menos infalível, perfeita então nem se fala, então uma boa parte do estímulo que me faz levantar da cama são os musculozinhos da perna se definindo e eu me achando uma grande gostosa enquanto corro pela ciclovia.

Houve um tempo em que eu me martirizaria, me sentiria uma fraude com essa satisfação interna, mas mais do que lutar contra o meu desejo patriarcal de ser a grande gostosa, eu celebro meu olhar amplo sobre o que ser gostosa significa. Acho lindas as pernas torneadas de quem corre, a celulite de 99% da população feminina, a barriguinha protuberante no shortinho de lycra, os gominhos marcados de quem manda ver nos abdominais. Também acho o máximo os braços molinhos de quem levanta quase nada, e os desenhados de quem pega pesado nos halteres. São todas grandessíssimas gostosas. 

Só assim entendi que muito mais do que negar minha vontade de participar, valia mais ampliar meu olhar sobre quem estava na linha de corte. Foi pegar a linha de corte e zunir com ela. Muito mais importante do que passar longe da porta desse grupo, é aumentar a porta de entrada.

Iana Villela é escritora, publicitária e perturbadora profissional. Diretora de comunicação da agência Co.Brand, gosta de pensar sobre a vida das mulheres e provocar reflexões com as palavras.

{Foto: Anna Shvets / Pexels}

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