Quando todo cuidado é pouco
Cris Pàz é colunista do Dia de Beauté, onde publica mensalmente sobre beleza e longevidade.
“An apple a day keeps the doctor away”, diz a frase. Minha avó levou a sério e adotou o hábito. Viveu bem até os 95. Pra mim, o complicado de comer uma maçã por dia é viver muitos anos mais — e ter de comer mais maçãs por muito mais dias. Nada contra a maçã. Poderia ser morango, abacaxi ou banana.O problema é o todo dia. Difícil não lembrar da canção do Chico e imaginar a maçã (ou o morango, coitado) fazendo todo dia tudo sempre igual. Que vida merece ser longa com tanta mesmice?
Está certo, o que não faltam são novos rituais de autocuidado pra gente não se repetir. Nesses tempos em que a coisa mais fácil do mundo é a informação, uma lista interminável de “rituais” nos persegue, até quando o que a gente menos quer é pensar nisso. E o que poderia ser salvo pelo termo “ritual” acaba esmagado pela obrigação. Não bastasse o rol de condutas, proibições, obrigações e alertas quanto ao que se deve ou não comer, aspirar, mastigar, alongar, hipertrofiar, respirar, inspirar ou expirar, notícias desencontradas engrossam a lista de contradições. Aquilo que fiz por anos, certa de que era um bálsamo para a minha saúde, a descoberta científica que acabo de ver no instagram derruba em segundos. A gente quer se cuidar e acaba numa espiral de angústia, sem saber se está prolongando a saúde ou se matando aos poucos. Socorro, alguém me salve, me proteja e me “autocuide”, porque eu mesma não estou dando conta.
Autocuidado será sempre uma palavra fundamental na nossa vida, quem sou eu pra discordar. A palavra é linda, desde que lado a lado com o equilíbrio. Do contrário, deixa de ser cuidado e vira tortura. Viver também é palavra fundamental, concorda? Não consigo pensar numa lista de boas práticas como sinônimo para uma estimulante experiência humana na Terra. Não faz sentido tirar o prazer em nome de viver mais, simplesmente porque viver sem prazer não tem graça. Será que isso deixou de ser óbvio?
Quando o autocuidado se torna fonte de angústia, é preciso tomar outro cuidado urgente: o de colocar o prazer como parte da rotina.
Preciso ressaltar: depois dos 50, não existe a possibilidade de não cuidar de mim. Faz pouco tempo que descobri os mecanismos para nunca mais me separar de mim. Cultivo cada vez com mais prazer esse romance comigo, mas cuido para colocar prazer e gosto como parte da rotina, ou a vida não faz sentido.
Quando me vejo ansiosa e tensa porque faltei à academia, porque coloquei uma colherinha de açúcar num café, ou somente porque comi um chocolate, a vida deixa de me convidar para ficar. É preciso encontrar um caminho do meio — e isso é muito particular — para cuidar de nós sem descuidar do gosto pela vida. Praticar uma ou outra subversão de vez em quando, ou a vida fica chata demais.
Quer um exemplo? Eu amo o pãozinho doce de padaria, aquele polvilhado com açúcar cristal. Vez por outra eu me dou o direito de comprar dois ou quatro pãezinhos e levar pra casa. Parto ao meio, passo manteiga dos dois lados e faço na chapa, tomando o cuidado para derreter o açúcar e assim saborear aquele caramelo no melhor pão na chapa do mundo. Doce, feliz e sem culpa. A vida merece.
E você? Quais são seus pequenos delitos pra tirar férias de tanta autocobrança? Qual é o seu caminho do meio?
Cris Pàz é colunista do Dia de Beauté, onde publica mensalmente sobre beleza e longevidade. Publicitária premiada e escritora com oito livros publicados, ela nasceu em 1970 e é uma das precursoras da produção de conteúdo digital no Brasil. Colunista da rádio BandNews FM de BH, comanda o podcast 50 Crises (entre os destaques de 2020 no Spotify Brasil) e traz novos olhares sobre saúde mental, protagonismo feminino, maternidade, moda e longevidade por meio de suas redes e palestras.
{Foto: KoolShooters / Pexels}
Comentários