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Um eterno 8 de março

22/03/24

Nem bem o dia 8 de março passou e já precisamos de outro. Seria um sonho seguir adiante sem precisar falar sobre o assunto, tratando a data como comemorativa, tipo Páscoa ou réveillon. Mas não há o que comemorar. A julgar pelas manchetes das duas últimas semanas, a impressão é a de que machismo e misoginia só ganham mais força mundo afora. Números impressionantes nos dão a medida, enquanto histórias reais nos colocam diante do espelho: e se fosse comigo?

Enquanto eu tentava reunir, num texto curto, estatísticas contundentes que me alcançaram neste Dia Internacional da Mulher, novas manchetes pipocavam. A justiça da Espanha concedeu liberdade ao jogador Daniel Alves, acusado de crime de estupro, graças à ajuda financeira do amigo Neymar, que também já enfrentou uma acusação do mesmo teor. Na mesma semana, veio a público o episódio do homem que simplesmente fez o que passou pela cabeça: passou a mão na bunda de uma mulher dentro de um elevador. E o Supremo Tribunal de Justiça afastou a hipótese de estupro no caso da menina de 12 anos, grávida de um homem de 20. 

Histórias que são ilustrações (de mau gosto) para a primeira estatística que trago aqui: a cada 8 minutos uma mulher é estuprada no Brasil. “E cada caso de impunidade é a semente do crime seguinte”, como definiu Leila Pereira, Presidente do Palmeiras e chefe da Delegação da Seleção Brasileira Masculina de Futebol, também nesta semana.

Mas a violência de gênero não é produto exclusivo do Brasil. Está mais para commodity, disponível no mundo todo e produzida por todos os gêneros. Para se ter uma ideia, 25% da população mundial (homens e mulheres) acreditam que é natural um homem bater numa mulher. São dados de 2023 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O mesmo relatório revela que metade da população mundial ainda acredita que os homens são melhores líderes políticos e melhores executivos de negócios do que as mulheres, e conclui que não houve melhora em termos de preconceitos de gênero nos últimos dez anos.

Mas é especificamente no Brasil que a cada 6 horas um homem comete um feminicídio — crime cometido em razão de violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher. 90% desses crimes são praticados por companheiros ou ex-companheiros.

É urgente ampliar o olhar para além do umbigo. E aqui incluo os homens despertos e conscientes que estão entre nós. É hora de trazê-los para a nossa luta. 

Dados como esses são simplesmente ignorados por muitas de nós. Será que escapamos da estatística ou estamos ocupadas demais em atingir padrões de beleza e até em competir com a coleguinha, enquanto a camaradagem masculina, em geral, só perpetua a opressão? É certo que, de um lugar privilegiado, costuma ser mais difícil compreender causas coletivas. Mas talvez o nosso equívoco esteja em pensar que de fato temos esse privilégio. Violência doméstica e sexual são crimes que acontecem em todas as classes sociais, frutos de um sistema secular e estrutural. Feminicídios costumam ser desfechos de relações tóxicas ou abusivas nas quais muitas de nós nos envolvemos, demorando às vezes anos para enxergá-las como tal.

Em cinco minutos sou capaz de me lembrar, sem dificuldade, de episódios pelos quais passei, que aprendi a guardar em algum lugar escondido da memória. O chefe que me chamou pra jantar no meu primeiro dia de trabalho quando comecei como redatora, aos 20 anos, enquanto sua esposa e sócia estava na sala ao lado. Outro chefe que me coagiu a voltar ao trabalho no 45º dia da licença-maternidade (que eu estava gozando depois de ter perdido meu marido, grávida), sob a alegação de que eu poderia perder o meu lugar para um colega talentoso. O passageiro da poltrona ao lado, que durante todo o voo movimentou braços e cotovelos enquanto digitava algo importante no laptop, invadindo o meu espaço sem pedir desculpa nem licença. Em mais 5 minutos, Deus sabe quantas outras memórias virão à tona.

Pare e pense. Provavelmente você vai se lembrar de uma ou mais vezes em que se viu em situações semelhantes. Mas você foi ensinada a esquecer, relevar, superar, subestimar. A cada silêncio sobre histórias particulares, estatísticas e manchetes se avolumam. Hoje gritam. São experiências que todas temos que, embora cotidianas, não são normais nem aceitáveis. Mas, por termos sido ensinadas a minimizá-las, hoje invadem a nossa timeline.

Não há maquiagem que deixe mais bonita essa realidade. O único caminho é falar sobre isso – o ano todo, todo dia. E tornar esse quadro visível para todos, a começar por nós mesmas. É urgente ampliar o nosso olhar para além do umbigo. E aqui incluo os homens despertos e conscientes que, embora raros, estão entre nós. É hora de trazê-los para a nossa luta. É para este, dentre outros propósitos, que existe o Dia da Mulher.

O que vemos todos os dias nos noticiários parece um coro de vozes masculinas a nos dizer que é inútil lutar por respeito e igualdade. Mas não é. 

Expandindo o tema equidade de gênero para o mercado de trabalho, veja este dado. De acordo com uma Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio, no Brasil, mulheres ganham em média 20,5% a menos que os homens. Dados de junho de 2023, do Fórum Econômico Mundial, indicam que a paridade de gênero só deve ser atingida daqui a 130 anos, em 2154. 

Enquanto isso, no último dia 11 de março, a cúpula da ONU sobre mulheres foi aberta com cinco discursos consecutivos, todos de homens.

O que vemos todos os dias nos noticiários parece um coro de vozes masculinas a nos dizer que é inútil lutar por respeito e igualdade. Mas não é. No último dia 21, enquanto eu concluía esse texto, Robinho entrava na prisão para cumprir pena pelo crime de estupro. Um jogador de futebol mundialmente famoso finalmente vai pagar pelo crime que cometeu. Um caso exemplar, que pode ser o primeiro passo para o fim da cultura do estupro no Brasil. 

Na comédia americana “O feitiço do tempo”, de 1993, o ator Bill Murray vive um “homem do tempo” da TV, que viaja para fazer a matéria anual sobre o “Dia da Marmota”. Entediado por cobrir o mesmo evento há anos, o repórter deseja voltar rápido para casa. Mas um encanto faz com que aquele dia se repita sistematicamente. O personagem tenta de tudo para se livrar daquela prisão no tempo, até se apaixonar por uma colega de equipe. E é com o coração tocado que ele passa a enxergar na repetição a oportunidade de fazer as coisas de um jeito diferente. Por trás de um enredo despretensioso, existe algo para pensar.  

Não nos apegamos ao Dia da Mulher, pelo contrário. Queremos é nos ver livres desse 8 de março perpétuo. Que vai se repetir diariamente até que os desfechos mudem.

Cris Pàz é colunista do Dia de Beauté, onde publica mensalmente sobre beleza e longevidade. Publicitária premiada e escritora com oito livros publicados, ela nasceu em 1970 e é uma das precursoras da produção de conteúdo digital no Brasil. Colunista da rádio BandNews FM de BH, comanda o podcast 50 Crises (entre os destaques de 2020 no Spotify Brasil) e traz novos olhares sobre saúde mental, protagonismo feminino, maternidade, moda e longevidade por meio de suas redes e palestras.

{Foto: Liam Edwards / Unsplash}

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