Beleza na Idade Média: padrões severos como os de hoje
O texto abaixo foi originalmente publicado no site The Conversation, que tem como objetivo disseminar o conhecimento acadêmico e científico de maneira acessível. Publicamos a tradução na íntegra do texto escrito pela autora, acadêmica e pesquisadora responsável pelo estudo – que com certeza vai interessar a você, leitora do Dia de Beauté!
Você deve se lembrar que Madonna, logo após aparecer no Grammy de 2023, foi alvo de um grande ataque virtual sobre sua aparência, especialmente por causa do que foi considerado uso excessivo de cirurgia plástica. A icônica cantora de 64 anos não demorou a se pronunciar dizendo:
“Mais uma vez, estou no centro do ageísmo [do inglês “ageism”, como é denominado o preconceito relacionado à idade] e da misoginia que permeiam o mundo em que vivemos. Estou ansiosa para muitos outros anos de comportamento subversivo, quebrando barreiras.”
Essa história é bem conhecida. Os padrões de beleza têm sido enraizados em diferentes culturas ao longo da história. As expectativas que mulheres e, cada vez mais, todas as pessoas, devem cumprir para atender a um certo nível de beleza, muitas vezes se baseiam em noções binárias de feminilidade ou masculinidade idealizadas.
Beleza como arma
Em seu livro de 1991, “O Mito da Beleza”, Naomi Wolf argumenta que os padrões de beleza ocidentais foram usados como uma arma para estagnar o progresso das mulheres. Mas, na cultura medieval, essas pressões eram ainda mais pesadas, já que a beleza estava fortemente associada à moralidade: a beleza era ligada à bondade, e a feiura ao mal.
Eleanor Janega aborda essas associações culturais em seu livro “O Sexo Antigo e Futuro: Viagem à Idade Média sobre os Papéis das Mulheres na Sociedade” (em tradução livre). Em sua interessante pesquisa, Janega mostra como a beleza “era a chave para o poder”, estando crucialmente ligada à riqueza, privilégio, juventude e castidade – criando um tipo de feminilidade “perfeita”.
A autora reflete sobre o que o estudo das mulheres na Idade Média significa agora: “A forma como pensamos e tratamos as mulheres é socialmente maleável. Embora alguns de nossos conceitos tenham mudado, continuamos tratando as mulheres como inferiores aos homens.”
Os padrões de beleza da Idade Média eram tão rigorosos quanto os de hoje, e muitas vezes prejudiciais à saúde
Beleza como forma de resistência
Recentemente, estive examinando um tipo de beleza “armada” (ou “protegida”) que algumas mulheres religiosas na Idade Média pareciam praticar para enfatizar a superioridade da sua “beleza interior”. No programa “The Idea“, da BBC Radio Wales, explorei como algumas santas medievais subverteram os padrões de beleza “tradicionais” para evitar viver vidas que pudessem prejudicar sua castidade e objetivos espirituais: em outras palavras, manchar a beleza de suas almas.
Algumas dessas táticas foram extremas. Em um mosteiro feminino nas fronteiras da Escócia, a abadessa era uma mulher conhecida como Æbbe, a Jovem, filha de Æthelred, Rei de Northumbria. Quando os vikings atacaram o mosteiro e ela temia ser profanada, Æbbe tentou repelir os invasores desfigurando seu próprio rosto: “A abadessa, com um espírito heroico… pegou uma lâmina e cortou o próprio nariz, juntamente com o lábio superior até os dentes, apresentando-se numa cena horrível para aqueles que estavam ao seu lado.”
Embora os rostos desfigurados das freiras tenham feito os vikings fugir, eles retornaram para incendiar o mosteiro, queimando as mulheres vivas. Mas, em seu martírio, as almas das freiras permaneceram belas e imaculadas, que era o que elas desejavam.
Na lenda do século XV, Wilgefortis, uma jovem princesa cristã portuguesa determinada a viver em perpétua virgindade, foi forçada pelos pais a casar com um rei pagão siciliano. Ao se recusar, seu pai a prendeu e torturou. Wilgefortis se privou de comida como penitência e orou a Deus para ser desfigurada. Seus pedidos foram atendidos e ela miraculosamente apareceu com um bigode e uma barba. Horrorizado com a perda de sua beleza, o pretendente a rejeitou, e seu pai furioso ordenou que ela fosse crucificada. Enquanto morria na cruz, Wilgefortis implorou a outras mulheres para orarem por ela para serem livradas da vaidade e do desejo erótico.
A metamorfose de Wilgefortis, dos padrões femininos de beleza medieval para um tipo de transmasculinidade oferecido por sua barba e bigode, é, assim como a auto-desfiguração de Æbbe, um ato de resistência fisiológica. Wilgefortis ora por deformidade e Deus lhe concede pelos faciais que repelem seu pretendente e asseguram a beleza de sua alma.
Assim como hoje, a pressão para atender aos ideais de beleza na Idade Média também causava estresse e problemas de saúde
Beleza eterna?
Hoje em dia, os cirurgiões plásticos, ao oferecer soluções para supostos “problemas estéticos” como os de Madonna, podem agir como figuras divinas na contínua busca para se adequar aos padrões de beleza que santas medievais como Æbbe e Wilgefortis usaram para subvertê-los.
De fato, os “deuses” da cirurgia plástica, como o Deus da cristandade medieval, de alguma forma permitem que seus seguidores façam com que sua aparência externa corresponda aos seus sentimentos internos – os estados de suas almas – permitindo-lhes fazer as pazes com as variantes de beleza que desejam.
Assim como na Idade Média, as mulheres hoje negociam os padrões de beleza aos quais foram historicamente confinadas, abraçando mudanças e deixando suas almas se manifestarem à medida que decidem o que a beleza significa para elas e seus corpos.
A busca por juventude e beleza – e pela beleza interior – raramente é sem dor, mas como sabemos, isso faz parte de um poderoso caminho para a realização pessoal.
Laura Kalas é professora sênior de Literatura Inglesa Medieval na Universidade de Swansea, no Reino Unido, onde ensina sobre literatura e cultura medievais, estudos de gênero e módulos trans-históricos sobre literatura, gênero e corpo.
{Fotos: cottonbro studio/ Pexels e Raph_PH, CC BY 2.0/ Wikimedia Commons}
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