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Sobre aindas e agoras

23/07/24
Cris Pàz reflete sobre como o "ainda" pode ser um incentivo poderoso, mas também uma armadilha que nos afasta do presente. Descubra como equilibrar expectativas futuras com uma apreciação genuína do momento presente.

Em sua palestra no TED, a psicóloga americana Carol Dweck cita um colégio de Chicago, onde o aluno que não alcança pontos suficientes na avaliação recebe como nota a expressão “not yet” (“ainda não” em português). Representando sua curva de aprendizagem, o “ainda não” dá ao estudante uma perspectiva temporal, em vez de uma noção de capacidade. Ensina que toda habilidade pode ser apurada com certa perseverança, e não simplesmente determinada pela natureza ou destino. Carol quer nos vender os benefícios do ainda em relação à tirania do agora.

É mesmo um alívio saber que, se você não chegou ao seu destino, está no caminho. Mas convém tomar cuidado com a armadilha que se esconde nesse “ainda”. Tão perigoso quanto a mania de competição e comparação, imaginar que o melhor sempre está por vir é um tiro certeiro no momento presente. “Aindas” podem ser silenciosos assassinos do agora, aniquilando-o em nome do que está para chegar. Se é que vai chegar. Aprendemos cedo a empregar a palavra que nos diz tanto sobre nossa relação equivocada com o tempo. E o verbo viver se torna uma inútil sequência de “aindas”, uma eterna luta entre o que queremos que seja e o que de fato é.

Sou a filha mais nova de cinco irmãos. Os primeiros nasceram em anos consecutivos, e eu nasci quatro anos depois da mais nova. Sou também a última neta da minha avó materna, com primos ainda mais velhos. Habitei uma espécie de hiato entre a minha geração e a seguinte. Sozinha eu inventava brincadeiras, conversava comigo mesma. E enquanto meus irmãos e primos se casavam, compravam casas e tinham filhos, eu me perdia no desejo de ser adulta antes da hora. Vivia esperando o aniversário, o namorado, o Natal, a hora de dançar música lenta — e o convite raramente chegava.

O tempo levou minha mãe e meu pai muito cedo. Me casei várias vezes e operei a esquisitice de ficar viúva antes de ser mãe. O tempo parece ter corrido demais para algumas coisas, ou foi demasiado lento para outras. No meu humano modo de entender. Me senti peixe fora d’água em repetidas situações, até compreender que assim é a minha vida — e está tudo bem. 

Ainda não fez. Ainda fará. Ainda faz. A mesma palavra que parece reconfortante em um contexto, no envelhecimento pode fazer doer os ouvidos, como nas clássicas “Ela tem 60 anos e ainda está bonita”, “Tem 80 e ainda está lúcido”. O “ainda” insiste em falar sobre um futuro que não chegou, ou sobre um presente que tem os dias contados para se tornar passado.  

E se você decidir ser feliz agora mesmo? Não esse feliz complicado, o simples mesmo.

Advérbio tão poderoso quanto traiçoeiro, a palavra parece sempre insatisfeita. Almeja o futuro em detrimento do presente, ou já transforma em passado o presente que, a despeito de persistir, está para ir embora. Interrompe a fluidez do movimento, espanta a beleza da calma, tira da vida seu frescor e também sua atualidade. É uma ilusão vestida de espera. Sublinha o que falta, em lugar do que se tem. Estraga-prazeres, parece se realizar advertindo sobre prazos que estão para vencer.

Há momentos na vida em que o ainda é uma imposição. O fundo do poço é um ainda. O luto é um ainda de longa duração. Outras tantas, é um vício do qual podemos nos livrar. Definitivamente, não somos donos do tempo. Mas temos a chance de tomar posse do presente, todos os dias. E raramente o fazemos.

“Tá chegando?”, pergunta a criança, repetidas vezes durante a mesma viagem. O episódio é um clássico da infância. Na caminhada para a vida adulta, a pergunta pode até desaparecer. Mas a interrogação continua, ao longo de uma estrada que parece não ter fim.

Apesar desse disfarce frágil, continuamos ansiosos pra saber se finalmente “está chegando”. A sexta-feira, as férias, o fim da fila, o técnico de internet, a viagem, a cura, a aposentadoria, aquele jantar, a posse, a próxima postagem, a festa de formatura, uma determinada cifra de faturamento. Podemos não ser mais crianças, mas a nossa relação com o tempo não amadureceu. Pelo contrário, vivemos bem mais ansiosos do que a menina de cinco anos, que conta os minutos para ver o mar e não tem noção sobre as distâncias. Pior: continuamos cegos para as paisagens do caminho, insistindo em olhar para o para-brisa ou para o retrovisor, em lugar de virar o pescoço e degustar a paisagem que vai descortinando árvores, vacas prontas para nos ensinar a calma e uma infinidade de verdes que não têm pressa, porque estão em paz com seu tempo de crescer.

O áudio acelerado, o vídeo que não passa de noventa segundos (incluindo o pedido de like), a edição que elimina os respiros entre uma frase e outra. Toda essa correria é a caricatura de uma vida que não sabe a que veio. Somos robôs que acoplaram a ansiedade humana.

Vamos tomar nossos “aindas” pelas mãos e transformá-los em inesquecíveis e deliciosos “agoras”.

Me nego a ser refém do ainda. Quero um hoje feliz, e feliz enquanto quero, do jeito que der. Um hoje que seja visto enquanto vivido, um feliz que se sabe sendo. Me recuso a acelerar os áudios do Whatsapp, como não me aperto para caber nos 90 segundos de um Reels porque não sou escrava do algoritmo. Não faço um post a cada 12 ou 24 horas, não vivo de narrar minha jornada nos stories. Não preciso ser novidade a cada momento nem a primeira a dar opinião.

Decidi amar os “aindas” da vida. Saborear o momento presente em cada pequeno ato. Varrendo a casa. Tomando suplemento. Na fila do caixa do supermercado. Na sala de espera do exame de ressonância magnética. No cinema com minha amiga. Outro dia eu estava na academia, esse lugar para onde tantas vezes fui me arrastando, e decidi fazer esse exercício durante o treino: fazer de cada passo o momento de beber da vida com gosto. Foi surpreendentemente fácil. E muito divertido.

No meio da tarde, quando me sento no sofá para uma pequena pausa, minha gata vem me ensinar que esse tal de ainda não está com nada. Sem abrir mão de sua elegância, se encaixa no meu colo e transforma pausa em recesso. Num assalto de afeto, sou condenada a viver aquele instante, antes de voltar a me ocupar do que já passou ou do que ainda está por vir. Minha gata é obcecada pelo agora.

E se você decidir ser feliz agora mesmo? Não esse feliz complicado, o simples mesmo. O feliz bem-humorado, disposto, que não precisa da casa arrumada para a vida ser boa. Esse que despretensiosamente nos deixa estar exatamente onde estamos: aqui e agora. Já experimentei ser feliz varrendo a casa, limpando a caixa de areia do gato, tomando banho, atendendo ao interfone, buscando a correspondência ou até na fila do cartório. É mais simples do que a gente imagina.

“Ainda não”, diz o adulto para si mesmo, no volante da sua vida. Porque sempre falta alguma coisa. Aonde vamos com tanta pressa? Tomemos nossos ainda pelas mãos e façamos deles inesquecíveis e deliciosos “agoras”.

Cris Pàz é colunista do Dia de Beauté, onde publica mensalmente sobre beleza e longevidade. Publicitária premiada e escritora com oito livros publicados, ela nasceu em 1970 e é uma das precursoras da produção de conteúdo digital no Brasil. Colunista da rádio BandNews FM de BH, comanda o podcast 50 Crises (entre os destaques de 2020 no Spotify Brasil) e traz novos olhares sobre saúde mental, protagonismo feminino, maternidade, moda e longevidade por meio de suas redes e palestras.

{Fotos: Valeria Ushakova / Pexels e Jacalyn Beales / Unsplash}

Comentários

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One reply on “Sobre aindas e agoras”

Leitura gostosa. A “falta” sempre vai ser nossa companheira … vamos em frente … obrigada!

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