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Rita Livre

17/05/23

Cris Pàz é colunista do Dia de Beauté, onde publica mensalmente sobre beleza e longevidade.

“Tô achando louco ser careta, é uma coisa que eu nunca experimentei”. A fala de Rita Lee para Pedro Bial em dezembro de 2017 comentava o fato de estar “limpa” havia 11 anos, desde o nascimento da neta.

Como todo brasileiro que se preze, tomei uma overdose de Rita Lee depois do último dia 8. É claro que descobri detalhes de sua história dos quais não fazia ideia, mas não foi preciso ter acesso a nenhuma grande novidade para concluir que Rita é uma prova de que podemos tudo.

Eu levava a vida sossegada, não me debatia com a necessidade de matutar sobre a importância da Rita Lee nas nossas vidas, simplesmente porque jamais questionei esse lugar da Rita em cada um de nós. Não se pergunta por que Rita Lee faz diferença na vida de alguém, a gente sabe disso.

Até que a Rita nos deixou. Levou meu sorriso — o seu também, posso apostar — e largou no lugar todas as possibilidades. Gosto de pensar que ela agora está ao lado de Fernanda Young. Fernanda foi uma mulher que desafiou a coerência e enfrentou muitos preconceitos, era incompreendida e criticada porque se metia a fazer de tudo — e fazia tudo muito bem, despertando, além de fãs, sentimentos não tão nobres, vindos de toda parte. Fernanda não entrava em caixinhas e isso costuma irritar as pessoas. Não por acaso, naquele sofá do Saia Justa, Rita Lee e Fernanda Young pareciam nascidas uma para a outra. Vinham do mesmo planeta.

Rita, no entanto, conseguiu abrigar todos os contrastes possíveis, sem que detivéssemos nosso olhar sobre isso. Ela tinha a incoerência de Fernanda, mas a exercitava com uma desenvoltura tão grande, que não chegou a acumular desafetos. Foi transgressora e unanimidade ao mesmo tempo. E o fez com doçura irresistível.

Só Rita Lee colocaria minha avó materna numa pista de dança improvisada, cantarolando “me deixa de quatro no ato” ao lado de filhas e netos. 

Cantora, compositora, multi-instrumentista, gostava mais de cinema do que de música, confessou ao Bial naquela mesma entrevista. “Tenho voz de mico-leão”, declarou também, mostrando que seguia à risca essa coisa de não se levar a sério.

Feminista sem crachá, falava com todas e todos num discurso sem rótulos. Declarava coisas sérias como quem contava piadas, e assim pregava também para não convertidos, sem que estes mesmos percebessem.

Só Rita Lee colocaria minha avó materna numa pista de dança improvisada, cantarolando “me deixa de quatro no ato” ao lado de filhas e netos. Se há um adjetivo que cai como luva para a primeira roqueira rebelde do Brasil (e a cantora que vendeu mais discos) é o nome da primeira banda que integrou. Rita era mutante, trocava de opinião sem se constranger, e isso é coisa de quem já nasceu livre.

Livre e loira. “Ruivou” em Londres e teve a cabeleira vermelha por décadas, mas assentou-se no grisalho como se tivesse nascido assim, bruxa e sábia como ela só. Tinha talento para o desenho, pensava em figurinos e capas dos seus discos e, por que não dizer, daria uma bela manequim de passarela. Embora não se posicionasse politicamente, teve suas letras entre as mais censuradas. Ao mesmo tempo, a mais ouvida em aberturas de novelas. Rita foi fiel à sua arte e a si mesma, e não deixou de ganhar dinheiro por isso. Não tinha pudor em fazer do seu trabalho uma bela fonte de renda. E fazia tudo isso despretensiosamente, quebrando regras sem nem mesmo saber quais eram as regras. Tímida e escandalosa, quieta e desbravadora, ativista e apartidária, revolucionária e bem-comportada, desobediente e adepta das orações. Moderna e tradicional, magrela e mulherão, bem-casada e depravada, sarcástica e profunda, avó e roqueira, paulistana e universal.

Me arrependo de nunca ter ido a um show dela, como me arrependo das muitas viagens que não fiz. Faz poucos anos que aprendi a cultivar mais momentos do que coisas, um atraso que venho corrigindo de maneira suave, já que culpa e remorso são destinos que não pretendo visitar — não há nada de interessante para ver por lá. Mas não foi preciso ir a um show dela para ter Rita Lee dentro de mim. Ouvi, cantei, dancei, li e assisti Rita por toda a minha vida, como agora choro de saudade. Foi o suficiente para entender que não se tratava de um ser humano comum.

Verdade, não é nada original escrever sobre ela tão poucos dias depois de sua morte. Por outro lado, é imperdoável não falar dela. O principal legado de quem teve uma vida como a dela é se tornar ainda mais vivo depois da morte. Muitas gerações poderão conviver com Rita Lee em suas músicas, livros, textos, declarações e cenas que vão contar a seu respeito. Esta é a conquista de quem ficou para sempre.

Se for preciso resumir Rita em poucas letras, a palavra é LIVRE, adjetivo que ela exerceu lindamente, em qualquer ponto da sua linha do tempo. Com sua liberdade ocupou não apenas alguns, mas todos os espaços, deixando a mensagem: lugar de mulher é “aqui, ali, em qualquer lugar”, parafraseando os Beatles numa canção que — diga-se de passagem — Rita também gravou em português, num disco-delícia que não me canso de ouvir.

 “Faltavam parafusos na minha cabeça”, disse ela uma vez, referindo-se aos tempos loucos de juventude. Pois eu penso que há parafusos demais nas nossas cabeças, isso sim. Só tirando um ou outro pino para alcançar a lucidez de ver que o “O Brasil anda tão Gotham City. Haja Batman”.

 Viva Rita, Rita Lee, Rita Livre, essa palavra que ela nos deixa como um mantra.

Cris Pàz é colunista do Dia de Beauté, onde publica mensalmente sobre beleza e longevidade. Publicitária premiada e escritora com oito livros publicados, ela nasceu em 1970 e é uma das precursoras da produção de conteúdo digital no Brasil. Colunista da rádio BandNews FM de BH, comanda o podcast 50 Crises (entre os destaques de 2020 no Spotify Brasil) e traz novos olhares sobre saúde mental, protagonismo feminino, maternidade, moda e longevidade por meio de suas redes e palestras.

{Foto: Divulgação Wikipédia e instagram @ritalee_oficial}

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