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Quando amanhã não é outro dia

28/04/23

Cris Pàz é colunista do Dia de Beauté, onde publica mensalmente sobre beleza e longevidade.

Faz algum tempo que decidi falar sobre o cansaço – mas ele mesmo me impedia. Eu estava cansada demais para escrever a respeito. Venho de um período ausente de mim. Digito ainda exausta, como quem acaba de escapar do cativeiro. O cansaço me sequestrou há meses. 

Não foi captura orquestrada, numa rua erma ao cair da noite. Fui raptada à luz do dia, em meio aos transeuntes. Ele tinha um semblante nada suspeito, diria até que sedutor. Com seu discurso convincente, foi me tomando aos poucos. Cheguei a desejá-lo pelo que me prometia em troca. Quando dei por mim, lá estava o cansaço, refestelado em meu sofá, cerveja na mão, futebol na TV. Já não era minha a casa, a agenda, a vida. O cansaço me venceu pelo cansaço.

Esperto, disfarçou direitinho enquanto me mantinha refém. Não cancelou meus compromissos, não impediu contatos sociais. Deu-me uma estranha liberdade, mantendo os olhos em mim, qual detetive de filme americano. Eu estava num relacionamento abusivo e não me dava conta. Era voltar para casa e encarar o cansaço de novo. Velava meu sono, me acordava cedo no dia seguinte. Eu adormecia exausta e amanhecia cara a cara com ele, a me prostrar mais uma vez. 

Amordaçada pela lentidão, fui atrasando projetos, abolindo tarefas simples, esquecendo o importante, até que tudo se tornasse urgente. A receita do remédio do gato, o chuveiro queimado, a autorização para o exame de rotina. Tudo se misturava na agenda, na cabeça, na cama. O extrato do banco, a lista de supermercado, a receita de granola salgada, o boleto da escola do filho me esperavam para dormir. Achar a chave de casa era milagre. Achar a chave de mim.

O cansaço me roubou de mim, colocou no lugar uma dublê sorridente, escondeu meus próprios desejos”

E assim ele me mantinha, espremida entre roupas, papéis e objetos, na bagunça do quarto ou no caos do escritório, o olhar revezando entre o teto e uma agenda sem nexo. A banana podre na fruteira, a poeira no móvel, ideias esparsas para um novo negócio, a postagem bombando, a cujos comentários eu não conseguia responder. Tarefas simples se tornavam hercúleas. Até as preferidas pareciam impossíveis – este texto, inclusive. 

Eu olhava no espelho e não me reconhecia. Negociava prazos, faltava à academia, via o mundo com duas olheiras no lugar dos olhos. O cansaço me roubou de mim. Chorei por tudo e por nada, me agarrei à cama como se ela fosse fugir, enganei o despertador e a mim mesma. Devorei doces inteiros em dias de calor. O cansaço me roubou de mim, colocou no lugar uma dublê sorridente, escondeu meus próprios desejos. Levou a memória e o senso crítico, trouxe uma tristeza que não sou eu. Devorou-me em desesperança, se amotinou com o espelho contra minha autoestima. 

Que novidade é essa, você poderá pensar. Cansados, estamos todos. E é aí que mora o perigo. Incluímos o cansaço na agenda – e não o descanso. Sinta-se em casa, dizemos a ele. Dia a dia ele nos rouba o básico, o copo d’água antes de dormir, a salada feita com prazer. E traz biscoito recheado, refrigerante, suco de caixinha, doces fáceis cobertos com chantilly. Dia e noite ele nos consome, um romance tóxico e discreto, mãos amarradas que adiam listas simples. 

Não é velhice, é cansaço. De excessos, telas, tarefas. De notícias, medos, perguntas. De regras, fórmulas, filtros. De não saber dizer não. De ter de ter opiniões. De não saber o que é fazer nada. Não é o tempo, é o excesso.

Envelhecer é natural. Viver exausta, não. Amanhã tem que ser outro dia.

Cris Pàz é colunista do Dia de Beauté, onde publica mensalmente sobre beleza e longevidade. Publicitária premiada e escritora com oito livros publicados, ela nasceu em 1970 e é uma das precursoras da produção de conteúdo digital no Brasil. Colunista da rádio BandNews FM de BH, comanda o podcast 50 Crises (entre os destaques de 2020 no Spotify Brasil) e traz novos olhares sobre saúde mental, protagonismo feminino, maternidade, moda e longevidade por meio de suas redes e palestras.

{Foto: Ketut Subiyanto no Pexels}

Comentários

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5 replies on “Quando amanhã não é outro dia”

Oi Menina Cris, a Paz🕊️ esteja contigo!!!
Hoje foi respondido a causa de nosso encontro, é algo que me incomodava, eu me perguntava pra mim mesmo, “como e por quê nossos caminhos se cruzaram?”, esse pensamento sempre aparecia numa curiosidade que me assombrava. Sinto-me como você, vivencio o mesmo que você, o cansaço também me aprisionou e ainda aprisiona, essa semelhança de nossas vivências foi que nos aproximou, claro que com a especificidade de cada um. Valeu pelo texto de desabafo, você é muito corajosa, te admiro amiga 😻

Que texto interessante! Diz muito! Senti esse cansaço durante a pandemia. Sou profissional da saúde e tantas notícias ruins, fake news, deboches vindo da maior autoridade do país eram doentios.

Olá, eu não poderia descrever melhor o início do que vivi. Sim, o início, porque isso tudo piora muito e a gente chega a um estado de transe triste. Não posso descrever melhor porque lembrar traz o cansaço à tona. Sim, porque ele nunca vai embora. Só ocupa um espaço menor, no subsolo. Fica lá, tentando escapar. A gente aprende a SER alerta e a ler os sinais sutis do cansaço tentando seduzir denovo. A gente aprende a colocar ele no lugar dele. Aprende a dizer não. Aprende como é bom fazer nada. Aprende a sorrir denovo. Reaprende a viver com muita ajuda e descobre que tem muita força. E tem sorte quem consegue aprender num lugar onde muita gente simplesmente desiste. Passa a entender que o cansaço é como uma droga e que se você se descuidar tem uma recaída. Você nunca mais é a mesma. Mas aprender que pode SER menos cansada e mais você. Um dia, surpreendentemente, você percebe que o cansaço tinha um propósito e que você se tornou alguém melhor pra você mesmo. Mas, sorte mesmo tem aquele que percebe, e se percebe, antes de deixar o cansaço entrar.

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