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A medicina não foi feita para o corpo feminino

28/09/21

Estamos acostumadas a pensar sobre a ciência e, mais especificamente, sobre a medicina como algo neutro e objetivo. No entanto, essas ideias mascaram um fato extremamente importante: a ciência não existe no vácuo, ela é um produto da sociedade em que vivemos e, infelizmente, desde sempre foram os homens que estiveram no comando – e as particularidades do corpo feminino não eram levadas em consideração.

As mulheres foram por muito tempo consideradas uma versão imperfeita do homem, o que deu margem para diferentes tipos de exclusões e silenciamentos: planejamento urbano, transporte público, design dos banheiros e até mesmo a formulação de alguns remédios – nada disso foi planejado de acordo com as necessidades das pessoas com ovários.

Um exemplo simples e assustador: o corpo feminino costuma ter proporções menores e estatura mais baixa que o masculino, mas o cinto de segurança dos carros é projetado a partir de um biotipo masculino. Resultado? Mulheres ficam mais suscetíveis a sofrerem ferimentos graves em caso de acidente, mesmo com uso do cinto (leia aqui). 

O dado vem de uma pesquisa divulgada pelo American Journal of Public Health, mas basta uma busca rápida no Google para ver a lista de discrepâncias crescer rapidinho. No caso do design dos carros, a justificativa apresentada é a de que existem mais motoristas homens do que motoristas mulheres. Ainda que isso seja verdade, a negligência não se justifica. Exclusões como essa mostram não apenas que o mundo não foi feito para nós, mas que essas estruturas estão aí para garantir que sempre ficaremos de fora. ‍

Tudo isso é um problemão que vai muito além de segurança no trânsito, já que metade da população do planeta não é adequadamente considerada em várias esferas e situações, e a saúde é uma delas. Curioso pensar como, por muito tempo, nós mulheres simplesmente aceitamos esse fato como algo natural, mas o cenário está – finalmente – começando a mudar.

A ciência não existe no vácuo e, infelizmente, desde sempre foram os homens que estiveram no comando – e as particularidades do corpo feminino não eram levadas em consideração.

O padrão masculino na medicina

Esse viés que acontece na saúde remonta aos gregos antigos, quando Aristóteles deu início à tendência de ver o corpo feminino como um “corpo masculino mutilado”. Por anos, médicos foram educados seguindo apenas a anatomia do homem como referência para seus estudos e pesquisas.

Já aquilo que fazia as mulheres fisiologicamente diferentes – o útero, os ovários e todo o aparelho reprodutor – tornava-se bode expiatório para qualquer queixa, do topo da cabeça ao dedão do pé. Da mesma forma, essas particularidades do corpo feminino eram usadas como justificativa para excluir as mulheres das pesquisas científicas.

De lá para cá, isso não mudou muito. Um artigo publicado em 2014 na revista científica Scientific American (aqui) declarou que incluir ambos os sexos em experimentos era um desperdício de recursos. Os corpos femininos (tanto humanos quanto animais) são considerados muito complexos, muito variáveis, muito caros para serem testados. 

Como consequência, muitos remédios que tomamos e muitos tratamentos que fazemos simplesmente não foram testados para o corpo feminino. O resultado? Segundo uma pesquisa conduzida em 2005, 8 em cada 10 medicamentos prescritos foram retirados do mercado americano justamente por causa de problemas de saúde nas mulheres que tomaram (leia aqui).

Por muito tempo, acreditou-se também que a presença do útero tornava as mulheres (brancas) mais frágeis emocionalmente, e todas as suas enfermidades eram atribuídas a essa suposta instabilidade emocional. Sem tratamento adequado, muitas morriam sem diagnóstico ou eram condenadas a passar uma vida com dores e desconfortos. 

Esse é o caso, por exemplo, da endometriose: uma doença que pode afetar cerca de 1 em cada 10 pessoas com útero em idade reprodutiva, mas sobre a qual se sabe tão pouco que até parece uma síndrome rara. Isso porque seu principal sintoma, a dor, costuma ser tratado com indiferença por muitos profissionais, que até bem pouco tempo atrás a viam como uma condição intrinsecamente feminina, um castigo merecido. 

Quem nunca ouviu por aí que uma dorzinha é normal? Bem, trazemos notícias: não é normal viver com dor.

Gênero e raça: dupla exclusão

Essa suposta fragilidade serviu também para justificar a exclusão das mulheres de espaços como a universidade e o mercado de trabalho. Para se ter uma ideia, a Escola de Medicina de Harvard começou a admitir o ingresso de mulheres em 1945. Mas ser frágil e protegida era algo reservado apenas às mulheres brancas de classes mais abastadas. Mulheres negras, por sua vez, sempre estiveram no mercado de trabalho, sobretudo nos serviços de cuidado e outras profissões marginalizadas. 

Segundo dados do IBGE, a população negra no Brasil corresponde a maioria (54%). No entanto, essa parcela populacional é a que menos aparece nos espaços de prestígio, embora lidere as estatísticas de violência e vulnerabilidade. No caso das mulheres negras, os números mostram que são elas as que mais sofrem com feminicídio, mortalidade materna e violências obstétrica e doméstica. Aqui no Brasil, elas enfrentam ainda a disparidade econômica, fazendo parte da base da pirâmide socioeconômica do País.

O legado da escravidão surge como reflexo quando observamos como a medicina as trata. O mito racista de que as negras são mais resistentes à dor, por exemplo, faz com que até hoje recebam menos anestesia nos procedimentos médicos. Esse tipo de negligência as torna mais propensas a desenvolver quadros graves de doenças tratáveis, como diabetes tipo II, câncer de mama e HIV. Segundo a psicóloga especialista em saúde coletiva e atenção primária pela Faculdade de Medicina da USP, Luana Alves (aqui): “Isso não tem a ver com uma predisposição natural do nosso corpo. São condições de vida, de alimentação, moradia, psíquicas. Tudo isso leva aos nossos indicadores de saúde serem muito piores”.

As extensas jornadas de trabalho, somadas ao estereótipo de força e invencibilidade, afastam a mulher negra do acesso à saúde, que ainda hoje oferece a elas espaços hostis, com pouco acolhimento e escuta. A mesma hostilidade é observada no ambiente dos estudos clínicos, que têm uma taxa de adesão baixíssima quando se trata de participantes negras.

Essa resistência se justifica pelo histórico de exploração sofrido por elas nos primórdios da medicina. Na verdade, parte da medicina moderna foi construída a partir de experimentações que ocorreram às custas da saúde de pessoas escravizadas, mas os exemplos de abuso não ficaram no passado. 

Em 1951, menos de um século atrás, uma agricultora de tabaco negra e pobre, Henrietta Lacks, teve suas células cancerosas usadas em vários experimentos de laboratório. As células de Henrietta foram compradas e vendidas por bilhões, mas ela permanece desconhecida e sua família não pode pagar nem um plano de saúde.

Parte da medicina moderna foi construída a partir de experimentações que ocorreram às custas da saúde de pessoas escravizadas, mas os exemplos de abuso não ficaram no passado. 

Conhecimento é poder

Casos assim mostram que a saúde também é um espaço de disputa e só é possível mudar essa situação quando tivermos não só mulheres, mas pessoas de diferentes corpos, cores, orientações sexuais e identidades de gênero produzindo conhecimento para combater os vieses estabelecidos ao longo de séculos de hegemonia branca e masculina. O que nos falta não é intenção ou inteligência, mas sim oportunidade. 

Prova disso é que se hoje podemos contestar os vieses da ciência com embasamento científico – como fazem pesquisadoras como Caroline Criado Pérez, Angela Saini, Elinor Clughorn, autoras que consultamos para construir este texto e tantas outras (inclusive na equipe da Oya!) – é porque, felizmente, o cenário está mudando. E a única forma de transformar ainda mais é com mais ciência, mais conhecimento e mais informação nas nossas mãos.

É importante dizer que quando falamos em mais conhecimento, não estamos falando apenas daquele produzido dentro das universidades. Queremos mais mulheres cientistas, claro, mas queremos também que toda mulher possa ter informação fácil e confiável a respeito do que acontece dentro do seu corpo, além de espelhos inspiradores onde possam se enxergar. Isso vale não só para as mulheres cisgêneros, que destacamos ao longo do texto, mas também para todas as identidades sub representadas em nossa sociedade. 

É importante que a gente sempre questione, se informe e pesquise sobre tudo que envolve nossa saúde e nossa vida. Informação é poder e só através dela podemos tomar as melhores decisões para o nosso corpo e nosso futuro. Vamos juntas?

Anna Vitória Rocha, Jornalista da Oya Care

Fontes:

INFERIOR É O CAR*LHØ: Eles entenderam tudo errado sobre nós. Por Angela Saini.

Invisible Women: Data Bias in a World Designed for Men. Por Caroline Criado Perez.

Unwell Women: A Journey Through Medicine and Myth in a Man-Made World. Por Elinor Cleghorn.

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Covid-19. (Aqui)

Atlas da violência 2020. Brasília: Ministério da Economia. (Aqui)

A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. (Aqui)

Política Nacional de Saúde Integral da População Negra – Uma política do SUS. (Aqui)

The Disturbing History of African-Americans and Medical Research Goes Beyond Henrietta Lacks. (Aqui)

Comentários

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6 replies on “A medicina não foi feita para o corpo feminino”

E se busco informações seguras… é aqui no Dia de Beauté que encontrarei! Bjo da Pri 😘😘

Gostei muito da última parte que diz para sempre nos questionarmos, pesquisarmos e buscarmos conhecimento – isso vale também para o discurso que coloca o homem como opressor? Acredito que tiveram muito mais homens dedicando suas vidas para salvar outras vidas (independentemente do sexo) do que o contrário. Mas vou pesquisar isso. Obrigada pela reflexão, me lembrou bastante do livro “o mito da beleza”, de Naomi Wolf.

Que post necessário! Tão importante abordar esse tipo de discussão!
Faz a gente se questionar da onde vem esse sentimento de “estar errada”. Não é a gente que tá errada, é que construíram um mundo pra gente não fazer parte como deveria!
Amando esses posts novos por aqui ❤️

Texto excelente! como mulher, jovem e médica, posso dizer que é uma questão ainda pouco explorada (principalmente no curso médico) e que estamos ainda na luta para combater na medicina atual. Adorei o insight e ver esse tipo de conteúdo aqui, precisa ser debatido!

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